Todos sabem que a Quaresma é sempre um tempo de voltar-se sobre as próprias ações, tempo de fazer um exame de si, diante da presença amorosa de Deus. A última Quaresma configurou-se para mim como um tempo de profunda graça, mas também de muita provação, principalmente devido à minha recente mudança de missão (o que ocasionou muitas outras mudanças: comunidade, cidade, cultura, rotina, tarefas...). Entretanto, quero ater-me aqui ao que considero ser um fruto da Quaresma e que, de certo modo, pode caracterizar um vislumbre da Páscoa.
A palavra de ordem aqui é HONESTIDADE. Ela é muito importante, pois à medida que me deparei com ela foram surgindo alguns questionamentos: O que é a honestidade? Quando somos ou deixamos de ser honestos? O que torna uma pessoa mais ou menos honesta? Não tenho a pretensão de fazer um tratado sobre a honestidade nessas poucas linhas, mas desejo compartilhar algumas inquietações que me foram ocorrendo durante o tempo quaresmal.
Tudo começou com uma
questão digital: Usar programas obtidos através de outros é honesto? Ou ainda,
considerando o programa uma forma de conhecimento, deve-se pagar por softwares e não ter acesso ao seu
código? Nesse “jogo”, como fica a compensação pelo trabalho (há um modo sofista nesse ato – receber pelo
conhecimento transmitido) de quem desenvolveu tal software ou, em outros
temos, de quem “produziu” tal conhecimento? É igualmente interessante que,
voltando um pouco atrás na História da Filosofia encontremos o pré-socrático
Heráclito de Éfeso, segundo alguns Fragmentos, que afirma o conhecimento como
um bem universal. Para ele, o lógos (“conhecimento”)
é parte de um todo ao qual temos acesso, esse todo nos unifica. Então, esse
todo deve ser compartilhado senão não serve de nada. Vejo isso como aquela
ideia da pesquisa científica de que o conhecimento deve ser disponível para que,
através da partilha e ajuda mútua, avancemos sempre mais no progresso humano.
Entretanto, essa inquietação não ficou
restrita a esse ponto, mas foi avançando em direção à questão musical. Aqui,
levem em consideração outros fatores, mas que podem igualmente ser transladados
à dinâmica de desenvolvimento de um software
comercial. Lembro, nesse momento, das grandes gravadoras que, normalmente,
lucram muito mais do que o artista sobre o que ele produz e que, em
outros momentos, até delimitam o que vem a ser “vendível” ou não é
comercialmente viável, restringindo perigosamente a liberdade artística,
portanto, o livre desenvolvimento do conhecimento. Considerando esse novo
cenário refaço minhas indagações:
- É justo pagar quando as gravadoras ganham mais do que o cantor ou compositor?
- É justo pagar por um conjunto de músicas que você não conhece e, por tanto, não sabe vai valer a pena?
- Quem é que deveria estabelecer o preço final: Quem dá a infraestrutura final ou quem compõe ou quem interpreta ou quem compra?
- Podemos estabelecer uma modalidade de mercado mais justa?
Vamos perceber que, agora,
apareceu a necessidade de estabelecer outro conceito (ou outro
questionamento?): o que é justiça? Quando alguém é justo? É possível ser mais
ou menos justo? É possível ser sempre justo? Deve-se ou pode-se ser justo o
tempo todo?
Essas mesmas questões poderiam
ser aplicadas a diversos outros setores que envolvem produção ou divulgação de
conhecimento, por exemplo, a publicação de livros ou a necessidade, por motivos
financeiros, dos alunos de graduação nas diversas universidades do país em
tirar fotocópias de livros porque são muito caros. Partindo do pressuposto de
que o conhecimento é um bem dá humanidade, também não se deveria cobrar por
livros. Obviamente essa proposta é economicamente inviável, pois, como disse um
amigo meu: “não existe almoço grátis” (o escritor precisa sobreviver, há custos
com a impressão e divulgação dos livros...). Apesar disso, não deixa de ser um
questionamento pertinente e relevante diante do mundo digital em que vivemos.
Pra mim, hoje parece que muita
coisa se resume a quanto... E, principalmente, a quanto estou disposto a pagar
por um determinado serviço. Mas, quem deveria estabelecer o valor do
conhecimento? Quem o produz ou quem o compra? Aliás, é ético “comprar” conhecimento?
Conhecimento, enquanto bem comum da Humanidade, tem valor de mercado? Certa
vez, fui ao Teatro assistir uma apresentação baseada na obra “Morte e Vida
Severina” de João Cabral de Mello Neto e paguei a inteira por R$12,00 (eles não
vendiam meia-entrada). Na mesma semana, fui ao cinema assistir uma comédia
brasileira (um tanto norte-americanizada) e paguei meia-entrada (R$ 8,50). Qual
das duas obras vale mais em dinheiro? Qual valeu mais enquanto experiência humanizadora? Qual me possibilitou um
contato mais profundo com a minha própria humanidade? E, aqui, temos outro
questionamento...
Tendo a pensar que isso de “honestidade”
ou “justiça”, nesses casos, é algo muito relativo. Da minha parte, com
relação à questão musical, tenho me preocupado com alguns artistas que não
estão vinculados a essas grandes gravadoras como Karina Buhr, Tulipa Ruiz, Clarice Falcão, entre outros... Tenho
sentido que, de certo modo, não pagar por essas obras é como se estivesse furtando
dessas pessoas o direito de usufruir plenamente da contribuição que elas deram
ao mundo e, também, pelo fato de que alguns deles deixam as músicas disponíveis
pra baixar no próprio site, ou permitem que se compre apenas a música que
deseja (hoje há lojas especializadas nisso) e paga-se apenas por ela e não por
uma mídia com um monte de outras canções que a pessoa não tem a menor pretensão
de ouvir. Surge aqui, para mim, uma questão mais fundamental, porque me implica
de forma mais próxima, “é ético baixar música da internet e não
pagar pela obra?”. Nesse ponto retomo outras duas questões anteriores: “é justo o preço que se paga por determinada
obra? Quem tem direito de fixar esse valor?”.
Não estou nem defendendo que não
se pague, mas, no caso da música estou inquieto com os intermediários, os
atravessadores de cultura, por exemplo, as gravadoras que parecem fazer na
cultura musical o mesmo papel que um atravessador de hortifrúti faz com os
agricultores: pagam uma mixaria pelo produto para vendê-lo por preços
exorbitantes ao consumidor final.
Diante de todas essas questões,
cheguei a um impasse que sinto que não será resolvido tão cedo por motivos
econômicos, pois, muitas pessoas não tem acesso à cultura por não terem condições
financeiras de pagar o que é exigido. Decidi pagar o que é exigido como
pagamento dessas coisas tanto quanto pessoas de “condições modestas” também poderiam
pagar, usando ao meu favor as novas modalidades de aquisição que são oferecidas
pelas mídias contemporâneas.
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