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terça-feira, 24 de setembro de 2013

A capacidade de aprofundar nos mistérios espirituais não é privilégio de ninguém

Tenho percebido que provavelmente um dos grandes problemas relacionados à vida espiritual e o modo como nos relacionamos uns com os outros diz respeito, numa primeira instância, à questão das imagens. Isto é, às imagens que fazemos de Deus, dos outros e de nós mesmos. Nesse sentido, é interessante o fato de que, mesmo após toda a evolução do pensamento contemporâneo acerca do papel dos leigos na Igreja e na sociedade, continuamos aprendendo a acreditar que os religiosos e os padres estão mais perto de Deus do que a maioria das outras pessoas, pelo simples fato de estarem onde estão.

De certo modo, atualmente, pensar um grupo de pessoas mais perto de Deus por simples estado eclesial é um tanto assustador porque, no fundo, quer dar a impressão de que existem pessoas que são mais especiais do que outras. Infelizmente, se olharmos a História da Vida Religiosa, veremos que essa já foi uma corrente de pensamento fortíssima no passado da Igreja, havendo, inclusive, uma fundamentação teológica da perfeição que supostamente seria o estado de vida religioso – não, os religiosos e os padres não são anjos, são seres humanos reais com problemas, fragilidades e também, é claro, qualidades, como qualquer outra pessoa no mundo. Com isso, quero dizer que pensar que um religioso, freira ou padre é alguém que está mais perto de Deus ou alguém especial pelo simples fato de ter escolhido tentar dedicar a vida como um todo à causa do Evangelho, não é necessariamente verdade, ou pelo menos, o estar mais perto de Deus não é exclusividade desse grupo de pessoas.

Com a afirmação do parágrafo anterior, não quero tirar o mérito ou desdenhar do testemunho belíssimo de tantos religiosos, religiosas, padres, bispos ou missionários que deram, ou tem dado, a vida para ajudar que outras pessoas ao redor do mundo (e ao longo dos tempos) pudessem fazer uma experiência profunda de Deus. Essas pessoas são importantes pelo muito que podem contribuir na sociedade.

O que está em questão aqui é que a transcendência a partir da Fé cristã e a vivência radical dos valores do Reino não são (e nem deveriam ser) privilégios apenas de um grupo de pessoas ou exclusividade inerente a um estado de vida específico (religioso, presbítero,...), mas, de modo geral, são exigências para todo aquele que crê no Evangelho. E, se formos manter esta discussão apenas à questão da transcendência (sem a parte da fé cristã ou valores do Reino), nem ser cristão é absolutamente necessário, posto que sabemos da existência de outras religiões tão ou mais antigas e boas quanto as religiões cristãs.

Faço ainda a ressalva de que não desejo entrar no mérito da veracidade de uma ou outra religião, mas me refiro ao fato de que, onde quer que esteja, uma pessoa tem capacidade (dada por Deus) de transcender. Para isso, pressuponho o dado antropológico de que a transcendência faz parte do “ser” humano, sendo assim, mesmo alguém sem religião ou ateu teria capacidade ou certo impulso a isso. Por isso, a capacidade de aprofundar nos mistérios espirituais não é privilégio de ninguém, seja ateu, budista, cristão, religioso, leigo ou de qualquer outra fé (como no deus da Polinésia...).

No passado, os primeiros religiosos saíram das cidades e foram em direção ao deserto. Lá, depois de algum tempo, alguns perceberam que não podiam ficar fechados em si e voltaram para “compartilhar” as descobertas espirituais que fizeram. É interessante notar que quando as Ordens mendicantes (como os franciscanos e os dominicanos) surgiram, eles foram em direção às periferias das nascentes cidades em contraste com os monges que ficavam enclausurados em seus mosteiros. Do mesmo modo, no início da Idade Moderna, surgiu uma terceira onda de religiosos mais focados na missão, na vida de apostolado além-fronteiras (mesmo dentro da sociedade), dentre elas estava a Companhia de Jesus.

Atualmente, temos muitas fronteiras culturais, sociais, econômicas, religiosas e, muitas vezes, elas não são bem definidas já que nossa sociedade é marcada por uma aterradora diversidade. O mundo é uma grande fronteira. Nesse sentido, o viver a vida cristã está em viver no campo, nas cidades, nas fábricas, nas ruas, escolas, instituições, enfim, o verdadeiro desafio cristão está em permanecer com Deus estando na sociedade, profundamente inseridos na cultura, nos dilemas, nas ambiguidades e contradições próprias de um mundo complexo como o que vivemos.

Nessa realidade extremamente plural, o modo mais exigente e radical de viver o Evangelho parece estar na mão dos leigos, pois são eles que estão profundamente inseridos na sociedade a partir de suas profissões e/ou ocupações. Portanto, eles estão nas novas fronteiras. E as questões que precisam ser postas são inúmeras. Como ter uma intensa e profunda vida espiritual apesar das tribulações e do cansaço das metrópoles? Como dedicar-se à família, ao trabalho e, ainda assim, gastar um tempo para ajudar outras pessoas no seu processo de desenvolvimento humano? Como ter consciência de si no mundo, mesmo sem ter quase tempo para respirar?

Apesar das dificuldades, é alentador olhar a imensa quantidade de iniciativas sociais e eclesiais que surgem nos tempos atuais. Há propostas de economia solidária, de negócios sociais, ONGs de todo tipo, institutos de reflexão e ação social, de direitos humanos, de defesa das minorias, espaços de discussão com jovens universitários, entre muitas outras iniciativas. Espiritualmente, para os cristãos, é preciso tentar perceber Deus presente no mundo, Deus presente nas relações humanas que vão se estabelecendo ao longo do dia, num sorriso, num olhar, numa frase, numa presença amiga, mas também no cansaço que pode trazer consigo não apenas dor ou frustração, mas ainda a satisfação de uma missão cumprida, de uma meta alcançada, de um projeto em execução. É preciso descobrir a consoladora presença de Deus nas entrelinhas da realidade, na simplicidade da vida. Precisamos, a cada momento, esforçar-nos por perceber as pegadas dEle nas areias da vida.

2 comentários:

  1. Gabriel,gostei de sua reflexão, embora, como diria um mestre Libânio, "sim e não" estão sempre juntos" . Refiro-me ao título do seu texto. continue escrevendo, mas como diria São Paulo, " Não esqueça dos pobres. Para sobreviver a esse " mundo" da FAJE, somente com muita oração e contato direto com os nosso irmãos mais simples.... Horácio Freire, SJ

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    1. grande Horácio!!! Muito obrigado pelas palavras, companheiro. grande abraço

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